16 de abril de 2009

Quem quer ser subestimado?

Aviso: este texto contém spoilers do filme Quem Quer Ser Um Milionário

A primeira memória que tenho de João Carlos Sampaio é de quando li uma das críticas de cinema que ele escreveu no A Tarde na época do início de sua história no jornal. Meu avô comentou meio desconfiado que um rapaz iria dividir com ele a responsabilidade de escrever sobre a sétima arte. Não tenho ideia de quando foi isso.

Anos mais tarde, eu trabalhava na produção da TVE da Bahia e iríamos fazer uma matéria sobre o filme Ó Paí, Ó. Estava aquela polêmica de gente defendendo a obra com unhas e dentes, e de gente metendo o pau na bufa. Me passaram o contato de João para eu convidá-lo a participar.
- Como é seu nome mesmo? Paula? Poxa, Paula, me desculpe, mas eu não aguento mais falar mal deste filme. Acho que já tá na hora de a gente parar de dar ibope pra ele.

Será que ele lembra disso? Vou perguntar. Pois que agora João é um de meus 72 chefes em uma das minhas 43 ocupações. Você, que reclama de seu patrão, pode ir logo ficando com pena de mim, que tenho uma coleção.

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- Sabe o mais intrigante? Você não tem amigos, daqueles em que você confia, daqueles que você respeita... Sabe? Não tem uns desses que vieram te dizer que adoraram o filme?
- Tem, João! Tem, tem! É realmente incrível!
- Pois é, eu fico tentando entender o que aconteceu...


Não falávamos mais de Ó Paí, Ó. Falávamos do ganhador de oito estatuetas no Oscar deste ano.

Assim como João disse ao negar o convite da TVE, também já cansei de falar mal de Quem Quer Ser Um Milionário. Mais que isso: com toda minha arrogância, não entendo por que as pessoas não veem o que eu vejo.

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Os grupos de cheerleaders (ou os times de basquete, baseball, futebol, tanto faz) de um colégio americano chegam ao momento crucial que definirá quem é o melhorzinho – e mais bonzinho, e mais justinho, e mais honestozinho, e mais todas-as-coisinhas-fofinhas-e-queridinhas –, com direito a troféu e fama no final, com direito a papel picado e a ser carregado pela torcida. De início, todo mundo é amiguinho, até que um-ser-bondoso-incorruptível-com-todo-amor-no-coração, desiludido e chocado, descobre que o parceiro-amigo-irmão é um malvado egoísta, vaidoso e trambiqueiro. Óóóóó! É uma decepção. Relações cortadas, cada um assume a liderança de um lado e a disputa fica acirrada. A turma do bem, mesmo frágil, injustiçada e cheia de desvantagens, enfrenta com honra todos os obstáculos revoltantes que a galera do mal prepara com a ajuda, claro, de um superior (talvez um técnico, talvez um professor, tanto faz) ainda mais devasso.

No auge dos conflitos, um dos membros do lado negro se indigna com tamanhas safadezas e percebe o quanto foi incorreto e usado por aquela-gente-falsa... é hora da redenção. Ele dá o empurrãozinho final (talvez desmascarando os fatos, talvez boicotando o golpe, tanto faz) para que o bem prevaleça.

É uma alegria! O líder, ovacionado, com medalha no peito, sendo brindado pela multidão – e, claro, ele nem imaginava quanta gente o estava apoiando – nem se importa com a fama e o dinheiro, nem-liga-pra-essas-coisas: ele quer mesmo é dar o beijo na mocinha, que, enfim, termina ao seu lado. Sobe-som.

Em Quem Quer Ser Um Milionário, a maior diferença é que o sobe-som derradeiro vem acompanhado de dancinha coreografada, no toque esquizofrênico final, quando o filme esquece que não é um musical para que as pessoas saiam dançando assim de repente.

Para fingir que a obra não é apenas mais um filmezinho qualquer de sessão da tarde – com todos os clichês existentes no cinema, com todos os padrões de produção e estilo estadunidenses, com todo aquele encadeamento de acontecimentos previsíveis, com toda a lógica católica de que os que padecem serão recompensados, com todas as rasas lições de moral e todo uso de situações chocantes para forçar a emoção (em vez de construí-la com inteligência) –, o diretor investe em um detalhe que, pelo visto, engana bem: trocar o cenário da escola de classe média pelas imagens sofridas da Índia.

No mais, é esperar pelo óbvio, aturar a insustentabilidade daquela história de que todas as perguntas do programa tinham relação com a própria dura-vida do mocinho (tá bom, tá bom, tem uma, U-M-A perguntinha que foge à regra: tentativa de dar crédito ao fato de que ele não é um “garoto culto”, apenas aprendeu com o sofrimento, tadinho), aguentar a cara de idiota do personagem e as caretas dos malvados (na moral, parecendo filme da Xuxa, que, para mostrar que o mau é muito-muito perverso, coloca o cabra em luz sombria, olhando de canto de olho para a câmera; eu já tenho mais de três anos e já consigo identificar estas coisas sem precisar dos estereótipos do teatro infantil).

E o que é aquela candura toda de Jamal? É incongruente um ser humano ter vivido daquele jeito e exalar doçura e ingenuidade no olhar de cachorro pidão. E como é que Latika sabia dirigir, gente? Será que o marido-gente-boa ensinou? E por que ela ficou corajosinha no último minuto? Antes, tinha certeza de que seria morta se fugisse; do nada, pega o carrão e se garante que “estou segura”. Oxe, deveria ter ido embora logo no primeiro dia, então. E aquele telefonema atendido no último toque? Vergonha alheia. E eles dois “nem aí” para os milhões? ‘Sei a resposta não, mas e daí? Foi tudo só para a gente se encontrar! É amor de infância, ora bolas!’ E precisava, meu Deus, será mesmo que precisava o irmão-que-se-redime morrer numa banheira cheia de dinheiro, sem deixar de, antes, soltar uma frase de efeito: “God is great”? Ui. E que cor de cocô é aquela quando o menino Jamal afunda na bosta? Caramelo! Nem merda eles fizeram direito.



Em tempo: para não dizer que eu só falei das flores podres, vale registrar a beleza colorida da fotografia, o capricho da produção e a atuação espetacular do garoto Ayush Mahesh Khedekar. Um tchuco.