12 de agosto de 2008

O tempo do meu avô - e eu

A morte nunca me pegou de surpresa. Nunca me deu uma rasteira. A morte, pelo menos ainda, não me é um problema.

Meu avô não achava o mesmo. Ele falava sobre a dor que considerava ser a pior coisa do envelhecer: assistir a novas partidas com freqüência, ver as pessoas que fizeram parte da sua história, que foram seus irmãos, amigos, parceiros, irem embora, um por um, numa contagem duramente regressiva. E ficar esperando a sua vez.

Os últimos anos de vida de meu avô foram marcados pelo desconforto que a saúde frágil lhe trazia. Faltava fôlego para a mente absolutamente sã. Ele chorava de dor e quando o ar lhe sumia. Se espremia enquanto a lágrima caía e dizia que era insuportável a idéia de se separar de todos nós, prevendo uma saudade que a descrença na vida eterna não o impedia de temer.

A morte lhe foi natural, na hora em que tudo já foi feito. Assim, dói menos. Oitenta e dois anos de casos a contar – e que a sua memória impressionante resgatava em detalhes. Era bonito quando ele, logo após alguma reclamação chorosa sobre alguma dor sentida, se refazia de supetão e declamava um poema, ou cantava uma das canções do repertório que creio ter sido só dele, batendo palmas, sorrindo satisfeito, como que pensando o quanto aquilo era prazeroso e que sempre haveria algo feliz para compensar. Ele nunca falava ou cantava uma vez só. Repetia as palavras, depois, pausadamente, querendo que os que estivessem ao seu lado enxergassem o que via: “Você ouviu isso? Isso é lindo!”.

Meu avô era médico mas nem dava opção para a minha mãe pedir, nas muitas vezes em que precisei tomar alguma injeção, que ele cumprisse a tarefa. Ele o fez uma vez só e depois cortou a possibilidade: “Não consigo encarar assim a dor de minha neta”. O seu modo de amar era enorme, exagerado, muito próprio, dentro de suas convicções. É, meu avô era uma pessoa cheia de certezas, ele tinha muita consciência das coisas que pensava... Mas, acima de tudo, era um ser de paixões, de encantamento, de olhinhos brilhando diante de um bom filme, uma boa dança, uma boa música, uma boa comida, um bom encontro.

Pude contar com a presença intensa de meu avô durante todos meus 27 anos. Não julgo se foi pouco ou muito, porque o que me fica é, por fim, suficiente. Vê-lo partir com dignidade, deixando tantas marcas, tendo feito tantas coisas, assinando um nome respeitado, me faz enxergar a sua morte com serenidade. Sim, é difícil lembrar do nosso último encontro, quando o levamos para o hospital, porque ali tudo já estava anunciado, a energia já estava escapando... Mas, não existindo definhamento, excessos, surpresas, indignação, não há o que questionar da vida que cumpre justamente seu papel.

Fica a saudade e, com ela, sigo em frente.
Foi massa o nosso tempo juntos.




22 de maio de 1996
Minha querida neta Paulinha,
Me lembrei de um conhecido poema chamado Escalada, do poeta Judas Isgorogota. Vale a pena repetir:

Escalada
Tentaremos nós dois esta escalada.
Toda escalada deve ser assim:
Rude, feroz, hostil, acidentada.

Quando cansares, firmarás em mim
A tua mão cansada e minha mão cansada
Contigo subirá até o fim.

- Mas se o destino que dirige os seres
Quiser que eu volte ao de onde eu vim?

Se eu descer amanhã? – Se tu desceres,
Contigo descerei até o fim.

A sua escalada, minha neta, será bem diferente. Não será dramática como a do poeta. É uma escalada para atingir um ponto mais alto no seu desenvolvimento. Isso é muito bom e fico muito alegre. Você é uma menina, talvez fosse melhor eu ter dito uma jovem, de muitas qualidades, apenas um pouco calada demais. Porém é de sua natureza e temos de aceitá-la assim. Você é boa, estudiosa, inteligente, sincera e bonita. Na sua escalada, atingirá alturas celestiais e fico muito orgulhoso com isso. Espero que não esqueça seu avô que lhe adora desde o momento em que lhe viu pela primeira vez, com poucos minutos de nascida. Quando chegar lá em cima, na sua escalada, lembre-se de mim e de sua avó, que estamos cá embaixo. E que a escalada de agora seja a primeira que você fará em sua vida, outras virão, mais importantes, porém a primeira é sempre a fundamental.

Beijos do seu avô
José Augusto.




Postado aqui, sobre ele, em novembro passado: Grandpa.
E cá, no Youtube, ele cantando uma de suas musiquinhas.

Um comentário:

  1. Hoje, 19/08, é o aniversário de meu avô. Ler esse texto me fez lembrar dele... Mas diferente do seu, o meu era um homem extremamente simples, caminhoneiro, iletrado. Fui a sua primeira neta. A sua "Sararu". A que lhe deu a alegria de ter os cabelos feitos da cor do Sol. A quem ele chamava de "minha doutora" com o peito inflado de orgulho. Ele não está mais entre nós. Teve uma despedida dolorosa da vida. Padeceu por muito tempo sobre a cama de um hospital até ser, enfim, levado em um último suspiro de dor. E ele adorava comemorar (e bebemorar!!!!) a sua festa de nascimento. Pois não é que o velho conseguiu a proeza de fazer seus dois primeiros filhos nascerem um dia antes e um dia depois do seu aniversário? Incrível... E esses dois primeiros filhos são meu padrinho e o meu pai. Sou uma afilhada, neta e filha feliz.

    Seu texto me fez um bem enorme.

    Eu que nesses dias ando meio sumida até de mim mesma.

    Um beijo carinhoso,
    daquela que te tem um bem-querer grandão assim,
    Dea.

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